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O delírio do projeto de redução de jornada

Há quem acredite que bastaria riscar oito horas da folha de ponto para reinventar o capitalismo tropical. A Proposta de Emenda Constitucional que prevê cortar a semana para 36 horas (modelo “quatro-por-três”, quatro dias de labuta e três de dolce far niente) promete transformar o Brasil no primeiro país em que descansar rende mais que trabalhar: seriam, segundo o economista José Pastore, 204 dias pagos de folga contra míseros 161 de efetivo serviço. Em bom português, seríamos remunerados prioritariamente para não produzir — um Carnaval que dura o ano inteiro e dispensa o confete da produtividade.  

A conta, claro, não fecha — a menos que a matemática seja facultativa. O mesmo estudo projeta que o cochilo institucional custaria 1,2 milhão de empregos formais só no primeiro ano e encolheria o PIB em aproximadamente 6 %. Não satisfeito, o projeto ainda turbina o custo da hora trabalhada em 22 % de um dia para o outro; afinal, alguém precisa bancar o piquenique prolongado.     É o tipo de mágica que faz o desemprego brotar antes mesmo de o trabalhador comprar a rede nova.

Os defensores da fantasia gostam de citar “casos de sucesso” no exterior, mas omitem um detalhe inconveniente: lá fora, as jornadas encurtaram com produtividade em alta e, sobretudo, via negociação coletiva. Tome-se a Alemanha, onde o sindicato IG Metall negociou — repare no verbo — a opção de 28 horas semanais para 900 mil metalúrgicos em troca de reajuste modesto e cláusulas de flexibilidade para as empresas. Nenhum decreto paternalista; só a boa e velha mesa de negociação.     Na França, a célebre lei das 35 horas veio temperada com incentivos fiscais e décadas de ajustes; mesmo assim, o governo acabou alargando brechas porque o custo por hora disparou. O exemplo serve mais de aviso do que de inspiração — mas quem liga para avisos quando se pode vender milagres?

Eis, pois, o coração do delírio: impôr por lei o que deveria ser calibrado por acordo setorial. Bancários brasileiros trabalham 30 horas há décadas porque conquistaram isso em convenção; metalúrgicos, químicos e petroleiros possuem jornadas diferentes pelo mesmo caminho. A negociação coletiva permite amarrar a tesoura da jornada aos fios da produtividade, escalonar transições, proteger empregos em ciclos de baixa e acomodar realidades que vão de hospitais 24/7 a startups de TI. Uma canetada homogênea, ao contrário, trata açougue, plataforma de petróleo e escritório de design como se obedecessem ao mesmo relógio — e chama isso de justiça social.

No plano político, o enredo beira o pastelão: confederações empresariais juram que repassarão o custo extra a preços ou demissões; centrais sindicais sabem que muitos filiados acabariam na informalidade — justamente a informalidade que já abriga quarenta por cento da força de trabalho nacional. Quando patrões e empregados concordam que algo não faz sentido, talvez seja hora de suspeitar do projeto. A negociação coletiva, por sua vez, distribui a responsabilidade: se a jornada cai sem que a produtividade suba, ambos os lados colhem as consequências e voltam à mesa para ajustar o acordo. É o antídoto institucional contra utopias que cabem num tweet, mas não cabem na folha de pagamento.

Convém, portanto, nomear a criatura pelo que ela é: um exercício de retórica pop-sindical que, em nome do descanso alheio, ameaça virar pesadelo econômico. Ao proclamar que “descanso é o novo trabalho”, o projeto esquece que salários precisam vir de algum lugar — de preferência, de bens e serviços produzidos por alguém. Sem negociação, sem produtividade e sem noção do custo, a proposta não passa de um convite oficial à sesta remunerada. E esta, como se sabe, dura pouco: assim que o despertador social tocar, faltará emprego para pagar o travesseiro.

Fonte: Contábeis

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